quarta-feira, dezembro 22

A visão clara na escuridão da cabine do Agatha

O entusiasmo inicial era enorme, a oportunidade de viver uma experiência nova tinha um sabor especial. Haveria, certamente, sentimentos novos e inesperados, e é isso que faz todo esse turbilhão da vida valer a pena. Pode parecer redundante, mas nós realmente esperávamos por sentimentos inesperados. Tudo isso era suficiente para superar o cansaço de um dia inteiro de entrevistas, apresentação de monografia, 3 horas de viagem, além de uma noite mal dormida, fruto do embarque cancelado do dia anterior.

Depois de um curto período de espera, atenuado pela conversa agradável com o ex-pescador já conhecido, foram chegando os pescadores um a um. O primeiro a chegar foi o mestre, o patrão de pesca, o responsável por um dos barcos que iriam embarcar. Sério, fechado, soltou pouquíssimas palavras e tinha um olhar desconfiado. Sentou-se e ouviu muito mais do que falou. Em seguida, chega seu irmão, que pouco lhe parece, fala um pouco mais e parece menos desconfiado. Junto, chega um outro irmão, bem mais parecido com o primeiro. Fisicamente apenas. Gosta de falar, rir, contar piadas e fez com que nos sentíssemos um pouco mais à vontade. Depois de um tempo, surgem os outros dois que faltavam, um deles seria o responsável pelo outro barco e o outro é um pescador recente, não mais de 3 anos.

O time estava formado, não havia falta de remédio que fizesse com que não entrássemos naquele barco. Confesso que, a princípio, julgamos ser bem mais fortes e resistentes do que realmente somos, mas isto é um detalhe. Detalhe que proporcionou algumas reflexões e os tais sentimentos inesperados. Não falo apenas do enjôo, que nesta altura, todos já devem saber. Falo de alguns sentimentos surgidos na quente cabine escura do barco Agatha.

Entramos no barco de uma forma diferente de todos os outros, pois acreditaram que seria mais seguro que não pulássemos da forma que fizeram. Embarcamos por volta de 1 da manhã, o mar parecia tranqüilo e no começo acreditamos que seria fácil passar 12 horas no barco com nome de escritora. Sugeriram que cada um ficasse em um barco, devido ao espaço, mas como não se opuseram, preferimos ficar juntos, pois na verdade, toda a segurança já comentada, era pura fachada. Sabíamos dos riscos e gostaríamos de contar um com outro.

O barco já andava quando conhecíamos suas instalações. Pouco conheço, não tinha como comparar ou opinar, mas sei que meu companheiro, como engenheiro naval, percebeu que a segurança não era das maiores.

Na primeira pausa de um dos pescadores, a do irmão que pouco parece com os outros dois, perguntamos se poderíamos gravar uma conversa. Explicamos nosso projeto e fizemos algumas perguntas previstas. Outras foram mais informais, o pescador parecia gostar de ser ouvido, ter suas opiniões gravadas. Vestido com a camisa do atual prefeito eleito da cidade parecia ter orgulho do irmão sério, mestre do barco. Revelou nesse papo a dificuldade enfrentada pelos pescadores da região. Diminuiu o peixe, aumentou o número de pescadores e os atravessadores (termo usado por ele) fazem com que o preço caia cada vez mais. No meio da conversa, o mar mostrou a que veio. Não conseguimos mais falar, tentei ficar em algumas posições diferentes, mas em menos de 10 minutos, passei mal pela primeira vez. Espero, ao menos, que tenha alimentado os peixinhos. Logo em seguido, meu grande companheiro não resistiu às ondas intermitentes.


Não demorou mais de 15 minutos e forneci mais comida aos pobres coitados dos peixinhos, que logo seriam mortos pelos trabalhadores. Essa me derrubou. Sentado no convés, não vi o momento que a rede foi atirada ao mar e só conseguia pensar que a pesquisa estaria comprometida e que eu ainda estaria ali por volta de 10 horas.

Não queria incomodar, recusei as propostas iniciais de dormir na cabine e fui deitar no convés, ao ar livre. Meu companheiro logo se juntou e percebemos que deitados não ficaríamos enjoados. Mais algumas propostas para dormir na cabine foram recusadas até que recebemos das mãos do mestre de poucas palavras um cobertor, começava a fazer frio. Em seguida, o irmão com a camisa do prefeito, surge com um colchonete para que deitássemos lá fora, já que não queríamos incomodá-los na cabine. Fiquei realmente surpreso. Os olhares desconfiados iniciais deram lugar a demonstrações de carinho e preocupação.

Conseguimos ficar lá até que começou a chover, não tínhamos mais como recusar o convite da cabine. Ao levantar em direção à cabine, mais um enjôo, mais uma leva de alimentos para os peixes da região de Macaé.

Depois de um pequeno período na chuva, com a cabeça para fora do barco, entrei na cabine e encontrei meu amigo deitado no chão, próximo ao motor do barco. Preferiu ficar ali, deixando reservada para mim uma cama, um tanto quanto mais confortável do que o chão duro e quente, devido à proximidade do motor. Meu estado não era dos melhores e não permitia que recusasse um agrado desses. Subi na cama com a condição de que trocaríamos de lugar durante a noite.

Dormi por umas 3 horas e, ao acordar, tentei convencê-lo a trocar de lugar comigo. Foi em vão, após algumas tentativas frustradas, tentei relaxar e aceitar. Tenho dificuldades em aceitar as coisas, mas tenho tentado, é um processo longo. Não voltei a dormir logo, passei a refletir sobre o que estava vivendo. A princípio, a certeza de uma amizade pra vida toda. Algumas pessoas podem até duvidar, achando que “vida toda” é um conceito exagerado demais, mas, definitivamente, estas pessoas não entendem que alguns gestos são gestos para a vida toda, por mais que sejam momentâneos. Sugiro que experimentam tais sentimentos, que cada abraço dado seja pra vida toda, que cada beijo seja pra vida toda, que cada gesto seja pra vida toda. Assim, entenderão o que quero dizer. Aquele foi um gesto pra vida toda de um cara que naquele momento foi meu amigo pra vida toda.

Olhei um pouco em volta e vi que os outros dois pescadores dormiam também. Apenas o patrão de pesca continuava acordado, atento o tempo inteiro, distraído apenas por um rádio de segurança que ficava na sua cabine. Neste momento tentei ouvir um pouco o que era falado no rádio, percebi que os pescadores comunicavam-se entre si e, o mais curioso, contavam histórias mirabolantes, história de pescadores. Queria poder levantar pra conversar com ele, ouvir um pouco daquelas histórias, mas a certeza de que passaria mal, me fez desistir.

Não cheguei a ver o barco parar por nem um minuto. Dormi mais um pouco e por volta das 5 da manhã, acordei e percebi que o meu companheiro não estava na cabine. Lembrei da idéia de vermos o nascer do sol em alto mar e tentei acompanhá-lo. Não durou mais de 10 minutos para que eu desistisse devido a mais um enjôo causado, o quarto, não percam as contas. Esse foi definitivo, e por mais que estivesse perdendo uma oportunidade única, decidi que não levantaria mais da cama.

Perdi o nascer do sol, perdi as entrevistas, perdi as histórias interessantes, não vi o peixe chegar por volta das 8 da manhã. Mas ao mesmo tempo ganhei coisa demais. A experiência vivida, os gestos de carinho e amizade, um sentimento muito bom me fazia esquecer o meu estado físico deplorável. Por volta das 10:40, levantei mais uma vez, estávamos chegando. Mais uma trapalhada, o cano de descarga estava exposto e depois de todo o cuidado durante a noite, queimei a mão durante o dia. Não importa também.

O dia estava bonito demais, os pescadores separavam os peixes, jogavam fora os que não serviam. Muitos morriam, a pesca de pareja é predatória. Ao menos, as gaivotas se alimentavam deles, fazendo um espetáculo belíssimo no céu.

Passamos um pouco mais de 10 horas no barco e pudemos sentir na pele um pouquinho do que alguns pescadores que ficam 10 dias em alto mar sentem. Bem pouco, claro. As condições de segurança do barco são precárias, não há banheiro e é muito arriscado usar o mar como banheiro, já que o barco balança muito.

No final, nos ofereceram camarão e diversos peixes. Preferimos aceitar apenas os peixes, que não seriam custosos para eles. Levamos 5 peixes e uma experiência única em nossas vidas. Saímos cansados demais, porém com uma bagagem muito maior, embora nossas mochilas tenham continuado com o mesmo peso.

Por fim, um comentário importante:

O dono do barco não foi pescar. E metade de tudo era dele!

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