domingo, novembro 30

Inadequação

Como não ser
inadequada
em  meio a pontes destruídas,
nexos desconexos,
valores invertidos?

Seu cuidado
é de quem conecta
com o outro
com a vida
e deposita nos encontros
o que de melhor possui.

Seria adequado
esconder
tudo que se aprende
só pra se preservar?

Inadeque-se
e nos salve
da mediocridade
e da camisa de força
que os caminhos já traçados
nos impõem.

Minha amiga,
venha pra festa
e nos ajude a amar.

segunda-feira, outubro 27

Em Santa

Era eu e mais uma senhora no ônibus. Logo ela desceu. A motorista, preocupada, me disse, alguns minutos depois: "não vai dormir não!" e perguntou: "onde você desce?" Logo levantei e começamos a conversar. Quando disse meu ponto, ela perguntou: "já é aqui?" O assunto ainda não tinha encerrado e ela simplesmente parou o ônibus no meu ponto e terminou de contar a história de seu irmão. Não durou mais de dois minutos, mas foi suficiente pra eu notar que o trabalho pode ser muito mais do que é. Voltei com um sorriso imenso. Pela espontaneidade da moça, naturalmente, mas também por uma identificação com a liberdade que tinha aquela mulher com seu trabalho. O trabalho ainda é espaço de opressão. Não é possível que esse absurdo não seja identificado, tratado e superado por seres pensantes.

Reunião de condomínio

Não existe amor nos regulamentos
Assim caminha a humanidade
Com uma extrema incapacidade
De redigir seus sentimentos

Terapia

Sei quem fui
Por vezes esqueço quem sou
Me encontro só de vez em quando
Quase sempre por descuido
Ou por desatenção.

É tão difícil marcar
Esse encontro
Entre mim e eu mesmo
Que decidi me contratar por uma hora
A cada quinze dias.

Descobri que preciso mais de mim.

A arte do desencontro

Quase que me encontrei,
por descuido,
mas não!

Por sorte,
tive ânsia de voltar
e pude ver
que o desencontro
é também uma das artes da vida.

Eurásia

Entre marroquinos e romenos,
sou descendente de sírios.
Falo português,
espanhol,
um pouco de inglês,
mas nenhum dialeto árabe.

Entre o subúrbio e a Tijuca,
nasci em São Cristovão.
Meu carioquês é da clara,
não me sinto típico,
mas mesmo assim,
encaro a dor e a delícia de aí ter nascido.

Entre moços amarrados,
rojões disparados,
e preconceitos sentidos,
me encontro com a raiva
e a sublime certeza da inevitabilidade
de termos que fazer algo distinto.

Entre a América e a Europa,
há mais similitude do que gostariam alguns
e menos semelhanças do que nos tentam fazem crer as análises simplistas,
que tratam as crises sem considerar o que as precedem.

Sorte a minha, por ter parado em vilarejos,
onde o vinho é recarregável,
as gentilezas são trocadas
e a amabilidade das pessoas transbordam os limites das diferenças raciais e continentais.

 Algo assim ainda será hegemônico!

A cura

A cada vez que choro,
sinto que melhoro um pouquinho.

Motivos

Pela delicadeza que ainda nos resta,
pelas possibilidades que ela nos reserva,
 pela estranheza de senti-la asperamente,
pelos sorrisos que não se encerram,
pelos cantos que daí se desdobram,
pela força do que podemos ser,
por todas as generosidades que podemos alcançar,
e por todas as culpas que deixamos de sentir,
sigamos em frente.

Vida ávida

A vida ávida
avisa
que é tudo
à vista

imediato
mediado
pela média dos dias
sob medida
para fugas

da urgência
entretanto
não se foge
como de você mesmo

somos nossas urgências
ou deveríamos sê-las

Leve intensidade

Suspenso, sem suspensão.
Pretenso, sem pretensão.
Intenso, sem intenção.

Propenso, dizendo que não.

Menino

Quem sabe se aquele menino voltasse e fosse menino
 não seria hoje menos menino?

Quem sabe se aquele menino tivesse se desencontrado,
ao invés de tê-lo buscado,
não flanaria mais pelas delícias da incerteza?

Quem sabe se aquele menino, ainda menino,
decidisse meninar,
flanar,
no suposto momento certo para isso,
não suavizaria as meninices que vivencia,
quando suposto homem?

É possível, que se tudo fosse diferente,
o homem não tivesse hoje olhar de menino.
É que sempre há tempo pra ser menino.

Rádio Patrulha

Por trás de toda patrulha
 há um profunda dúvida
 revestida de certeza

Oscilações

A covardia e a ousadia
na noite ardia
esfriava de dia
e assim se espremia
entre a prosa e a poesia
entre a música e a orgia
por quem muito confundia
dor com ironia